O Eleito

quarta-feira, janeiro 18, 2006

O Voto Vazio

Quando se chama os cidadãos a votar o mínimo que se exige é que o voto tenha consequência. Pedir o voto supõe gerar expectativas. Exige firmar compromissos entre o eleito e o eleitor. É esta a alma da democracia.

Organizar o Estado sob o princípio democrático, segundo o qual os decisores são eleitos por sufrágio directo e universal, impõe que os decisores eleitos tenham a possibilidade elementar de tomar decisões. É a consequência.

Gerar expectativas significa prometer uma determinada acção no exercício de funções. Prometer essa acção significa permitir uma avaliação posterior ao desempenho efectivo do eleito em função do que prometeu e do que fez.

No dia 22 de Janeiro os portugueses são chamados a eleger um Presidente para a República. O que, em princípio, acarreta tudo o que atrás descrevi: consequência, expectativa, promessa, acção e avaliação. Em princípio. No fim, não.

Sucede que o país vive actualmente com um sistema de Governo que resultou da reacção ao derrube do Estado Novo no primeiro impacto (versão originária da Constituição, em 1976) e da vontade, aliás saudável e legítima, de tirar a Ramalho Eanes os poderes suficientes para eliminar a tutela militar da democracia. Isto é, o actual sistema de Governo teve uma razão de ser, uma explicação e correspondeu a uma boa solução na infância da nossa democracia.

À medida que os anos foram passando os Presidentes foram perdendo poder. Eanes, por decisão constitucional. Os outros pela força da política.

Convém lembrar que no tempo de Ramalho Eanes ninguém falava em magistratura de influência do Presidente. Falava-se em poder do Presidente. Apesar de semi-presidencial já nessa altura, o sistema permitia uma intervenção directa do Presidente no Governo, através, por exemplo, dos célebres Governos de iniciativa presidencial.

Depois chegou Mário Soares. Como político instintivo que é, Soares inventou de imediato a célebre “magistratura de influência”. O Presidente já não mandava. Restava-lhe influenciar. E Soares influenciou.

Com Sampaio deixou de se ouvir a expressão. Porque, quase sem se dar por isso, o Presidente deixou de influenciar. Restou-lhe falar. Assim como numa espécie de magistratura da palavra. E Sampaio falou. Para se proclamar recorrentemente preocupado com os problemas da Nação, mas sem lhes poder pôr a mão. Salvo raros momentos de ruptura, é o que resta hoje ao inquilino do Palácio de Belém: preocupar-se.

O que se pergunta hoje é se este sistema continua a ser o melhor para governar Portugal, para resolver os problemas dos cidadãos e para assegurar a subsistência do Estado e do país no futuro. A minha resposta é: “não”.

A situação actual da democracia representativa é original e perigosa. Com efeito o que os cidadãos elegem são os titulares dos dois órgãos de soberania que menos poderes de facto têm e que menos podem decidir e mudar no concreto as opções políticas do país no dia-a-dia. Elegemos os deputados e o Presidente da República. Não elegemos o Governo nem o Primeiro-Ministro. O voto popular tem-se esvaziado de conteúdo e de poder.

A evolução do país foi gerando esta perversão representativa. Para fazer o que o Presidente faz hoje, dispensava-se bem a eleição directa. Por força partidária e mediática a primeiro-ministrização do sistema foi-se impondo ao sistema institucional e constitucional. Por isso meio Portugal ficou frustrado com a nomeação de Santana Lopes para substituir Durão Barroso sem eleições. O sistema habituou o povo a escolher o personagem e o povo não gostou da mudança de elenco na sua peça privativa. A lei permitia-o. A política rejeitava-o. Foi a prova da disfunção em que institucional e alegremente vivemos sem discutir ou querer mudar a causa da disfunção.

E essa disfunção está na estrutura fundamental do sistema de Governo. O presidencialismo resolvê-la-ia. Um Presidente eleito pelos cidadãos a mandar e um Parlamento eleito pelos cidadãos a mandar, fiscalizando, apertada e permanentemente o Presidente. Um dos modelos possíveis é o que está previsto no projecto de Constituição da NovaDemocracia, que é publicado em separata nesta edição da Nova Vaga. Mas não é o único.

Hoje a Presidência da República é vista como uma espécie de coroação de uma carreira política. E quem é eleito, certamente não procura trabalheiras. O país precisa de muito mais que isso.

(publicado na Nova Vaga)
PS (salve seja!) A foto, que parece tirada de propósito para este texto, foi obtida no Chama Oculta)


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