O Eleito

sábado, novembro 05, 2005

Projecto De Constituição Presidencialista

O Jorge Ferreira apresenta-nos um projecto de Constituição presidencialista, ligado à Nova Democracia, da autoria de Paulo Otero. Este projecto, com todo o respeito que merece o trabalho do Autor, é francamente mau. É, salvo pontuais excepções, um misto de duas partes: uma parte boa, que é uma pura repetição do que já temos consagrado na nossa Constituição actual, só que por palavras menos bem conseguidas; uma parte má, que lhe é acrescentada, e que é, de longe, a maior parte.
Não me é possível perder seis ou sete dias seguidos a fazer um post de dedidado ao projecto - como o reclama, no mínimo, uma análise jurídica cuidada do mesmo, dada a complexidade da matéria em causa. Num olhar muito superficial, deixo aqui as linhas gerais da passagem dos meus óculos pelo texto.
O art.º 1º, atinente à pessoa humana, é uma tentativa de supressão do actual catálogo constitucional de direitos fundamentais, muito mais completo e abrangente. É certo que o número 4 prescreve que «são constitucionalmente reconhecidos como fundamentais todos os direitos necessários a uma garantia eficaz e integrada da dignidade humana em termos individuais e sociais». Mas direitos como o direito de reunião e manifestação, o direito de petição e acção popular, o direito à greve, o direito ao arquivo aberto, entre muitos, muitos outros direitos fundamentais, não integram necessariamente a previsão deste número 4 - que, aliás, seria alvo das mais díspares interpretações, podendo lá caber tudo, mas também muito pouco. E depois tem pormenores interessantes, pela perplexidade que me causam. A alínea d) do n.º 3 do art.º 1º deixa-me boquiaberto. Que é isso do direito do ser humano à «inserção num ambiente familiar normal»? Uma tentativa de proibir constitucionalmente a adopção por pessoas não casadas ou por homossexuais? O que é um ambiente familiar normal? Quais os padrões da normalidade? É que neste país é absolutamente normal, não só, mas especialmente no interior, o marido beber uns copos e dar umas boas estaladas à mulher, enquanto os filhos assistem. Neste art.º 1º defende-se ainda, no n.º 6, a imprescritibilidade de certos crimes de grande gravidade. Faz já algum tempo que a nossa ordem jurídica abandonou as teorias retributivas dos fins das penas. Esses fins, nos tempos que correm, são essencialmente dois: prevenção geral positiva (confiança da comunidade na vigência e eficácia da norma violada) e prevenção especial positiva (ressocialização do agente do crime). Com a imprescritibilidade, estes fins, razoáveis, deixariam de fazer qualquer sentido.
Abaixo, temos o art.º 2º. No n.º 6, mais um repositório de ideias nacionalistas, como é apanágio de uma certa direita: «não podem existir transferências de soberania para entidades supranacionais que excluam o consentimento do Estado, podendo sempre Portugal, a todo o tempo, resgatar os poderes de soberania transferidos». Lá se vai a União Europeia, à qual, apesar do nosso pessimismo crónico, devemos o grande impulso dado pelo nosso país desde a entrada de Portugal na CEE.
É claro que, entrelinhas, há (poucas) boas propostas, como a que se pode ver no art.º 4º n.º 6: «os titulares de todos os órgãos constitucionais eleitos não podem, consecutivamente, exercer mais de dois mandatos». Mas são realmente raras.
Quanto à organização do poder político, já tive oportunidade de criticar o presidencialismo e defender a suficiência dos poderes do Presidente da República no actual quadro constitucional. Mais reafirmo que faz, efectivamente, falta um poder moderador que tenha competências de fiscalização negativa dos actos do Governo, paralelamente e fora das que são atribuídas à Assembleia da República - nomeadamente, mas não só, a competência de veto político -, bem como [dado ser o moderador o Chefe de Estado] competências de dissolução e demissão não arbitrária da AR e do executivo. Como convém a um sistema equilibrado de checks and balances. Por outro lado, entendo que o Chefe de Estado deve ser configurado como uma entidade acima das contingências da governação. Seria pouco engraçado ver o Presidente, o Chefe de Estado, o representante da Nação, alvo de contestação nas ruas pelas suas medidas governativas, alvo dos ataques sempre incessantes da oposição, ou mesmo a fazer campanha eleitoral nas autárquicas pelo seu partido.
Por último, o Tribunal Constitucional não deve ser extinto. Dada a sensibilidade da matéria em causa, é mais avisada a existência de um tribunal especializado na administração da justiça em questões de natureza jurídico-constitucional.

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