O Eleito

terça-feira, novembro 01, 2005

Semi-Presidencialismo Vs Presidencialismo

Li com atenção o estimulante «Acabar Com O Tabu», exumado do Público, do Jorge Ferreira. Porém, não posso concordar com o seu conteúdo.
Numa crítica à forma de governo semi-presidencialista, vai afirmando que o Governo não é eleito directamente pelos portugueses, que o país escolhe directamente quem não tem poder e não escolhe quem na verdade o tem. Que reivindica perante quem não elege. Jorge, penso que só numa visão plástica das coisas se poderá afirmar que os portugueses não elegem o Primeiro-Ministro. É certo: trata-se de um modo indirecto de escolha, porquanto o Primeiro-Ministro é nomeado pelo Presidente, ouvidos os partidos representados no Parlamento e tendo em conta os resultados eleitorais. Mas, na prática, quem vota, nas eleições legislativas, sabe perfeitamente que o seu voto é de escolha do Primeiro-Ministro, sabe exactamente que, caso vote no partido X, o Primeiro-Ministro será Y e que, caso vote no partido 2, o Primeiro-Ministro será 3. E porque assim é, na prática das coisas, os portugueses reivindicam perante quem, conscientemente, elegeram: o Primeiro-Ministro. Que é responsável perante os portugueses, perante o Presidente da República e perante a Assembleia da República. Repito: na prática das coisas.
Depois, o Jorge atesta que «o Parlamento, tirando o poder orçamental, debate política e legisla as mais das vezes sob impulso da maioria. A sensação que o país tem é que ali não existe poder real, pelo menos o poder mínimo exigível a quem é directamente eleito pelos cidadãos de quatro em quatro anos. Os mecanismos de fiscalização do Governo e da Administração estão desvalorizados. O acto legislativo vive do impulso governamental. O escrutínio do poder político anda ao sabor das conveniências maioritárias.».
Mais uma vez discordo. O Parlamento tem vastas competências na nossa ordem constitucional, compartimentadas por várias funções. Sem proceder a uma enumeração exaustiva, passo a referir algumas dessas funções. Desde logo, tem uma função legislativa. É ao Parlamento que cabe a primazia da feitura das leis: o Parlamento dispõe de uma reserva de competência legislativa absoluta, ao lado de uma reserva relativa de competência (a qual possibilita a cedência de autorização ao Governo para legislar sobre determinadas matérias). Tem também importantes funções de controlo e fiscalização. Nomeadamente, a Assembleia vigia pelo cumprimento da Cosntituição e das leis e aprecia os actos do Governo e da Administração. Para isso, detém vários poderes: constitui de comissões de inquéritos sempre que tal seja requerido por 1/5 dos deputados [que gozam dos poderes de investigação próprios dos tribunais]; efectua perguntas e interpelações ao Governo; apresenta moções de censura; aprecia as petições que lhe são dirigidas.
O Governo, em matéria legiferante, tem a seguinte esfera de poderes: fazer decretos-leis em matérias não reservadas à AR; fazer decretos-leis em matérias de reserva relativa da AR, mediante autorização desta; fazer decretos-leis de desenvolvimento dos princípios ou das bases gerais dos regimes jurídicos contidos em leis que a eles se circunscrevam. Por isso, afirmar que o Parlamento não tem um poder real, é completamente destituído de sentido.
Quanto ao Presidente, continua o Jorge: «tem essencialmente dois poderes: o de dissolver o Parlamento e o de demitir o Governo. De resto, conta pouco. Veta umas leis de vez em quando, representa-nos externamente e faz uns discursos. Na expressão consagrada pela prática, exerce uma magistratura de influência, que não de poder. E, não obstante, é eleito directamente pelos cidadãos de cinco em cinco anos, em nome de um programa que não tem poder para aplicar, em nome de um projecto que não lhe compete aplicar, em nome de uma ideia de país que não tem meios nem competências para conseguir.».
Não sou da mesma opinião. O Presidente tem poderes suficientes para exercer com eficácia a sua condição de quarto poder, de poder moderador, guardião do regular funcionamento das instituições. Poderes como o de veto político e legislativo [dos decretos da AR e do Governo que aguardam promulgação como lei], de dissolução da AR e demissão do Governo, de presidir ao Conselho de Estado, de dirigir mensagens à AR, de presidir ao Conselho Superior de Defesa Nacional, de exercer as funções de Comandante Supremo das Forças Armadas, de decisão sobre a realização ou não de um referendo, de requerer ao Tribunal Constitucional a apreciação preventiva da constitucionalidade das normas contantes de leis, decretos-leis e convenções internacionais, bem como a declaração sucessiva de inconstitucionalidade de normas jurídicas, de representação da República Portuguesa, entre outros, são suficientes para o PR exercer a sua função moderadora. Qualquer ideia de país, programa ou projecto que o PR tenha, terá de ser posta em prática no âmbito das funções que lhe são atribuídas: essencialmente moderadoras. Assim, se o Chefe de Estado for eleito em nome de um programa que não tem poder para aplicar, é porque necessariamente andou a enganar os eleitores ao apresentar autênticos programas de governo durante a campanha presidencial (como, por exemplo, o têm feito Cavaco Silva e Francisco Louçã).
Ao contrário do Jorge, pelo exposto, não considero que o que resta do poder nacional está concentrado nas mãos do Governo. Pelo contrário. Por outro lado, a interdependência institucional é um vector de equilíbrio entre poderes que se controlam reciprocamente.
Se o país está como está, Jorge, a culpa não é certamente da forma de governo semi-presidencialista. A responsabilidade, para o bem e para o mal, do estado do país, deve-se exclusivamente às pessoas e à sua competência. Ou falta dela.
[Também publicado no Dolo Eventual]

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