As Gavetas Da Cultura
O Américo de Sousa postou o seu «Dúvidas Democráticas», acerca da primeira das condições que Dahrendorf estabelece como imprescindíveis à preservação de um regime democrático: a intolerância face aos adversários da democracia. Disse o que pensava em «O Absoluto E O Relativo» - ao qual o Américo apresentou a sua discordância n'«O Perigo Da Intolerância Democrática». Cumpre-me agora discordar da discordância. Mas vamos por partes.
§1. O Américo começa por dizer: «Não procede o (meu) argumento de que sendo a Constituição revisível, não faz sentido proibir, à partida, uma crítica ou um ataque à democracia – diz o Pedro Santos Cardoso. Mas eis que, quando já me preparava para ripostar, leio imediatamente a seguir que, afinal, sempre reconhece que uma crítica à democracia é perfeitamente possível. Bom. Se há coisa a que, numa argumentação, qualquer das partes está obrigada, é a respeitar a lógica do seu próprio raciocínio. Sigamo-lo então. Se o Pedro admite que uma crítica à democracia é perfeitamente possível, então terá igualmente de admitir que não faz sentido proibir, à partida, uma crítica à democracia. Isto parece-me tão claro que, salvo melhor opinião, desqualifica, por si só, a alegação de que o meu argumento não procede. Porque, insisto, estamos aqui ainda no domínio da pura lógica argumentativa.»
Eu compreendo que o Américo pertença a um blogue chamado Retórica e Persuasão - que, por sinal, é muito bom e recomenda-se - e que, por isso, ater-se a questões de forma se tenha tornado já para si um hábito. O que é de louvar, uma vez que os defeitos formais de discurso afectam, sem dúvida, as mais das vezes, a substância. Mas o Américo não interpretou adequadamente aquilo que eu escrevi. Analisemos então formalmente as minhas afirmações.
Sim, reconheci que uma crítica à democracia é perfeitamente possível. Mas, logo de seguida, afirmei que um ataque já não era possível. Por isso, logicamente, aduzi que o argumento «sendo a Constituição revisível e contestável, não faz sentido proibir, à partida, uma crítica ou um ataque à democracia» não procedia. E não procedia não por causa da palavra crítica, mas sim porque estava nele contido a palavra ataque - o que, logo de seguida, me prontifiquei a esclarecer, dizendo que uma crítica era perfeitamente possível - ao contrário de um ataque. Ou seja, a frase não colhia como um todo (com a palavra ataque), mas apenas em parte (atinente à crítica) - pensamento o qual, com os esclarecimentos posteriores, pensei que tivesse sido compreendido. Bom, mas isto é de pouco interesse.
Depois prossegue: «Reparo, contudo, que, ao mesmo tempo que admite a crítica à democracia, o Pedro escreve que “só o ataque não é permitido”. Há então nesta parte algum equívoco de recepção pois no meu post, mobilizei os dois termos, “crítica” e “ataque”, numa relação de total sinonímia. Um e outro referem-se apenas a vozes discordantes (e não a bombistas com cinto de explosivos, por exemplo) que se apresentam no domínio da liberdade de expressão e discussão doutrinal. E foi também nestes precisos termos que o primeiro dos três requisitos, preconizados por Ralf Dahrendorf como pilares da democracia, me suscitou algumas reservas.»
Como o Américo saberá, as palavras são polissémicas. Têm diversos significados. Destarte, «ataque» tanto poderá significar «crítica», como «agressão» «assalto», por aí afora. Uma vez que o Américo usou, na mesma frase, ambas as palavras «crítica» e «ataque», das duas uma: ou poderia tratar-se de um reforço de ideias [usando-se neste caso tais palavras em sinonímia] - que, parece, foi o que aconteceu; ou poderia tratar-se do uso de duas palavras com diferente conteúdo [uma delas - «ataque» - com um conteúdo mais desvalioso do que a outra] - que foi o que assumi, porquanto, a primeira hipótese, esvaziaria de utilidade uma das duas palavras. Bom, mas isto também é de pouco interesse.
§2. Agora sim, o interesse começa a subir. Continua: «O facto de duvidar de que a intolerância para com os adversários da democracia seja a melhor maneira de defender e preservar esta última, não é a mesma coisa que advogar a impunidade de seja quem for (e não apenas os adversários da democracia) no caso de infringir a lei. O questionamento crítico do texto constitucional não desobriga ninguém do seu cumprimento enquanto estiver em vigor, nem tal é minimamente sugerido no meu post. Não se trata por isso de radicalizar a tolerância como valor absoluto mas, pelo contrário, de denunciar o carácter absoluto (e acrítico) da preconizada intolerância para com os adversários do regime. E, já agora, permito-me discordar também de quando afirma que “o argumento de que o ataque à democracia não deveria ser proibido, uma vez que a Constituição é revisível” teria que ser levado “às últimas consequências”. O que esse meu argumento teria que levar era à consequência que foi invocada e para a qual se mostra idóneo: a de mostrar que se a própria lei fundamental de um país democrático é revisível é porque a democracia que a enforma se oferece ao questionamento. Até porque se um regime democrático não for receptivo a sucessivos melhoramentos e actualizações ao mundo da vida, mais tarde ou mais cedo, estará condenado. O mesmo se diga se não possuir argumentos para se defender e tiver que enveredar pela intolerância para com os seu críticos ou adversários, quiçá, pela perseguição. A intolerância e a perseguição ideológicas são marcas distintivas da ditadura, não da democracia. E se, como reconhece Ralf Dahrendorf, até o primado da lei é susceptível de levar a uma ditadura sob a forma de democracia, por maioria de razão, o mesmo pode vir a acontecer se a intolerância para com os adversários se institucionalizar, como parece defender o mesmo Dahrendorf. No mais, sinceramente, não esperava que entre interlocutores com formação jurídica pudesse ser confundido o plano conceptual de caracterização da democracia com o da esfera de aplicação das suas leis, nem o de uma preocupação eminentemente legislativa com o da função judicial. Um passo mais e o elástico comparativo chegaria à tolerância no cumprimento da pena. Não, não é por aí. Como o Pedro Cardoso bem sabe, nada no meu post permitia tal extrapolação. O que permitia era, antes, concluir que assim como o facto da Constituição ser revisível significa, entre outras coisas, que está aberta ao questionamento ou crítica, também a democracia e cada uma das leis que a asseguram, seja a que proíbe o homicídio, o sequestro, a injúria ou qualquer outra, podem e devem ser democraticamente questionadas e, se necessario, revistas. A menos que da lei se tivesse uma concepção divina, o que não é o caso do Pedro, claro. Não se confunda, pois, a liberdade de rever ou modificar uma lei - que foi ao que me referi - com o eventual laxismo axiológico do seu desenho normativo – que, sou levado a crer, foi para onde o Pedro me “quis levar”.»
Com a minha extrapolação, caro Américo, não penso ter confundido o plano conceptual de caracterização da democracia com o da esfera de aplicação das suas leis. Passei apenas de sistema a sub-sistemas, sendo que todos estão imbricados entre si. Dado o carácter onto-geneticamente deficiente que o Homem carrega em si, desde sempre tentou racionalizar o seu sistema cultural, agavetando-o em diversos sub-sistemas. A axiologia que imana de tal sistema encarrega-se, instintiva e heteronomamente à vontade individual, de emprestar vida aos vários sub-sistemas que vão sendo criados, contribuindo assim para vencer a natural dispersão do Homem. Ora, um desses sub-sistemas é o sistema normativo.
Assim, temos um estrato maior, de onde é irradiado o conjunto de valores de uma dada comunidade; e, mais abaixo, vários estratos paralelos entre si, formados a partir daquele estrato maior, que organizam e racionalizam a convivência humana. A democracia é parte integrante do nosso sistema cultural. Ela apresenta-se como condicionante da nossa própria compreensão dos outros e do mundo. Tal sistema é um sistema aberto: está em constante ir e vir, questionando-se e evoluindo permanentemente. Tal devir é alimentado por um persistente movimento de inputs e outputs no sistema. Deste modo, conclui-se que a democracia se oferece ao auto-questionamento. Mas, como já afirmei, o sistema agaveta-se em vários sub-sistemas, também abertos, sendo um deles o sistema normativo. E este sub-sistema está medicado com os nexos de sentido que lhe são injectados pelo sistema. O sistema conforma o sub-sistema. E que temos nós no sub-sistema? Estratos. À cabeça, surge a Constituição, depois vêm as leis em sentido amplo, e por aí afora. A Constituição, benzida da axiologia pressuposta no sistema, é também questionável, dado que o sistema, que lhe confere existência, também o é. O mesmo se passa com as leis. Estas são questionáveis, uma vez que a Constituição e o sistema outrossim o são. Aquilo a que chamou uma extrapolação minha, caro Américo, foi um saltar do sistema para o sub-sistema, ambos vertidos na mesma axiologia, ambos questionáveis, ambos abertos. Não foi uma confusão. Foi uma analogia perfeitamente válida.
Por outra via, os sistemas tendem a garantir-se, a conservar-se, a sobreviver, a defender-se de ataques (ataques no meu sentido da palavra, que não críticas - uma vez que estas são permitidas num sistema aberto de permanente input e output). E defendem-se, para poderem existir. Assim, o modo de a democracia se defender de um ataque é proibindo a constituição de organizações que a neguem (mas não a sua crítica, que está garantida como input num sistema aberto). O mesmo tipo de lógica e pensamento para o sub-sistema, onde estão a Constituição e as leis. No dia em que os inputs (crítica permitida) de negação, tanto no sistema como nos sub-sistemas, sejam em maior número ou mais fortes do que o sistema defensivo, o sistema entra em colapso, arrastando consigo os sub-sistemas. O que só sucederá quando o nosso horizonte de compreensão seja, de alguma forma, quebrado. Por isso, a democracia, integrante do sistema, propende a defender-se de ataques, mas não de críticas.
2 Comments:
E, nesse "Xistema", cuja discussão tanto vos apaixona (e muito bem), quem é que decide o que é crítica, ou ataque? O que é permitido, ou não?
O sistema judicial cujas decisões são tão boas e "santas" que manda para a cadeia inocentes, enquanto liberta e protege bandidos e facínoras?
Ou os governadores civis que autorizam manifestações racistas, assegurando aos seus promotores e respectivasa organizações publicidade que, doutro modo, não teriam; enquanto que proibem protestos, justificados, de militares?
Vai uma enorme confusão na minha cabeça... porque não sei como "encaixar", na prática social, estas vossas "axiomáticas"!
É só para me situar!
Ah! E o "Estrato Maior"? Surge como? Como é que se "legitima" como estrato Maior? Como é que se "conjuga" com a dinâmica evolutiva do conjunto?
Outra coisa igualmente importante:
diz o Pedro: "No dia em que os inputs (crítica permitida) de negação, tanto no sistema como nos sub-sistemas, sejam em maior número ou mais fortes do que o sistema defensivo"... Eu acho que esse dia já chegou, há muito. (Vejam-se os resultados dos inquéritos de opinião acerca da credibilidade do Sistema e sub-sistemas...) Mas não se dá por isso (dentro do Xistema), porque as críticas são silenciadas; tal como acontece com a opção e opinião da ABSTENÇÃO.
Portanto, o que me diferencia, são as regras de avaliação do que é DEMOCRACIA. A exclusão, nazi, duma grande percentagem de cidadãos e das suas críticas, opiniões, opções, é incompátível com DEMOCRACIA, obstrui o desenvolvimento da País e a resolução dos problemas...
Caro Biranta:
1. «quem é que decide o que é crítica, ou ataque? O que é permitido, ou não?»
A Constituição.
2. «O sistema judicial cujas decisões são tão boas e "santas" que manda para a cadeia inocentes, enquanto liberta e protege bandidos e facínoras?»
Lá está o Biranta com o seu mau feitio...
3. «Ou os governadores civis que autorizam manifestações racistas, assegurando aos seus promotores e respectivasa organizações publicidade que, doutro modo, não teriam; enquanto que proibem protestos, justificados, de militares?»
As manifestações pacíficas são permitidas (estão naquilo a que, no post, chamei crítica/input). Proibido é a organização. Quanto aos militares, isso já dava para uma discussão muito grande...
4. «Vai uma enorme confusão na minha cabeça...»
Durma bem e tome umas vitaminas. ;)
5. «Ah! E o "Estrato Maior"? Surge como? Como é que se "legitima" como estrato Maior? Como é que se "conjuga" com a dinâmica evolutiva do conjunto?»
O estrato maior são os traços culturais de um povo num dado momento histórico - que tem uma dada maneira de se auto-compreender no seu encontro mundanal. Por isso, surge espontaneamente. É a própria dinâmica.
6. «Outra coisa igualmente importante:
diz o Pedro: "No dia em que os inputs (crítica permitida) de negação, tanto no sistema como nos sub-sistemas, sejam em maior número ou mais fortes do que o sistema defensivo"... Eu acho que esse dia já chegou, há muito. (Vejam-se os resultados dos inquéritos de opinião acerca da credibilidade do Sistema e sub-sistemas...) Mas não se dá por isso (dentro do Xistema), porque as críticas são silenciadas; tal como acontece com a opção e opinião da ABSTENÇÃO.
Portanto, o que me diferencia, são as regras de avaliação do que é DEMOCRACIA. A exclusão, nazi, duma grande percentagem de cidadãos e das suas críticas, opiniões, opções, é incompátível com DEMOCRACIA, obstrui o desenvolvimento da País e a resolução dos problemas...»
Esse dia não chegou, como é óbvio. Uma crise cíclica não pode ser confundida com um momento de divórcio. Teorias da conspiração...
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