O Eleito

domingo, novembro 27, 2005

O Absoluto E O Relativo


Américo de Sousa lança, no seu post «Dúvidas Democráticas», uma questão interessante para o debate: a da intolerância face aos adversários da democracia, primeira das condições que Dahrendorf enuncia como necessárias à manutenção de um regime democrático. Embora não seja politólogo, gostaria de oferecer à epifania a minha opinião acerca das três questões propostas: [1] Não estará uma tal condição - cuja operacionalidade não se nega - em contradição com a própria natureza tolerante e consensual da democracia? [2] Pode um democrata admitir ao diálogo apenas os que pensam como ele? [3] Se a própria Constituição é revisível e contestável, que sentido faz proibir, à partida, uma crítica ou um ataque à democracia?
Penso que a resposta passará por não considerar a natureza tolerante e consensual da democracia como um valor ou dado absoluto. Fazendo um paralelismo com o direito à vida: este direito será, sem dúvida, o mais forte - é dotado de uma força quase sagrada, diria - de todos os direitos constitucionalmente protegidos. Todavia, nem mesmo o direito à vida é um direito absoluto: pense-se na legítima defesa. Nesta, o agente passa de agressor a agredido. Esta última agressão - ainda que se trate de uma agressão à própria vida -, sob determinados pressupostos, é lícita. Porque não há direitos nem valores absolutos. Noutra óptica: por que não é permitido o sequestro, dada a natureza democrática e tolerante das sociedades democráticas hodiernas? Lá está. Não é permitido porque obnubila, afasta, agride a liberdade do outro. Mas, à partida, faria todo o sentido que houvesse tolerância também para com os sequestradores. Só que, uma vez mais, não há direitos nem valores absolutos.
Mas, pergunta-se com legitimidade: por que é que não há direitos nem valores absolutos? Porque os direitos não existem isolados, estão presos a um nexo numa complexa cortina de fios que os une e entrelaça. Relacionam-se e é isso que lhes dá sentido.
Um democrata pode e deve admitir ao diálogo não só os que pensam como ele, mas também os que pensam de forma diversa. Uma máxima a adoptar, a meu ver, é que todos, sem excepção, devem ser chamados ao debate. Tal é permitido pela nossa democracia (recorde-se as manifestações de extrema-direita que recentemente ocorreram no nosso país), que admite a liberdade de expressão (mais um direito ou valor não absoluto), e o direito de reunião e manifestação pública e pacífica. O que a nossa democracia não permite, e bem, é a constituição de organizações racistas ou que perfilhem ideologia fascista, porquanto pretendem excluir outros do debate. Assim como qualquer pessoa que, dialogando, injuria ou difama outra, é passível de responder criminalmente por tal abuso de liberdade, qualquer organização fascista/racista - porque nega valores como o da igualdade, pluralismo de expressão, respeito pelos direitos e liberdades fundamentais, et caetera - é passível de ver-se declarada extinta. É que tais valores colidem com o outro, anulando-o, coarctando-o, de alguma forma, na sua liberdade e autodeterminação. Retomemos o exemplo do sequestrador: é perfeitamente legítimo e legal, cabendo na sua liberdade de expressão, o sequestrador vir defender, em praça pública, o direito ao sequestro. O único comportamento que lhe é vedado é o de sequestrar quem não se quer ver limitado na sua liberdade.
Por último, o argumento de que, sendo a Constituição revisível e contestável, não faz sentido proibir, à partida, uma crítica ou um ataque à democracia, não procede. Antes do mais, uma crítica à democracia é perfeitamente possível, como penso que ficou demonstrado. Só o ataque não é permitido. Pensado até ao fim, o argumento de que o ataque à democracia não deveria ser proibido, uma vez que a Constituição é revisível e contestável, teria de ser levado às últimas consequências: não faria sentido também, assim, proibir o homicídio (dado que o direito à vida pode ser contestável, especialmente pelos homicidas), proibir a injúria, o branqueamento de capitais, a burla, a ofensa à integridade física, o peculato, o abuso sexual de menores, o sequestro, a corrupção. Porque todas as leis são revisíveis e contestáveis e não faria sentido, à partida, proibir estes comportamentos.

11 Comments:

Blogger Mário Almeida said...

" [...] porque nega valores como o da igualdade, pluralismo de expressão, respeito pelos direitos e liberdades fundamentais, et caetera - é passível de ver-se declarada extinta."

O BE o PCP e todos os outros partidos de extrema esquerda não se enquadram nestes pârametros ?

Não quero propriamente dizer que as organizações fascistas devem ser permitidas, tenho sérias dúvidas qual o caminho mais correcto, mas o talvez porque viemos de uma ditadura de direita (que verdadeiramente não existe, mas isso é outro assunto), os partidos de extrema esquerda são tolerados como sendo democráticos, pluralistas e respeitadores dos direitos e liberdades fundamentais. Não são.

8:12 da tarde  
Blogger Pedro Santos Cardoso said...

Caro Mário,
a extrema esquerda é tão perigosa como a extrema direita. Mas é claro que o BE e o PCP não se enquadram nesse perfil. Ambos são partidos democráticos. Correspondem, ambos, para a esquerda, ao espaço do CDS-PP na direita. Partidos que negam valores como o da igualdade, pluralismo de expressão, respeito pelos direitos e liberdades fundamentais são, por exemplo, o PNR em Portugal, a FN de Le Pen em França, etc.

8:30 da tarde  
Blogger Mário Almeida said...

Eu não tenho dúvidas que se algum dia o BE ou PCP chegassem ao poder, uma das primeiras coisas que fariam seria precisamente controlar a informação, o pluralismo e as liberdades fundamentais precisamente, e aqui é que entra o perigo, em nome da democracia. Foi o que se passou de 25/a a 25/11.

Esta troca de ideias que estamos a ter sobre a natureza dos partidos como o BE ou PCP (para miim de de extrema esquerda) é fundamental para se chegar a alguma conclusão sobre se devem ou não os partidos de extrema direita, racistas, nazis, etc, ser proibidos.

E se permitidos, qual deve ser a fronteira da sua acção política que não podem ultrapassar. Será nos discursos, nas acções de rua, nas propostas políticas ?

11:07 da tarde  
Blogger David Afonso said...

Ena! Agora é a minha vez: Fujam! Fujam! Vêm aí os comunistas!»

Agora a sério: estamos tão seguros com o PCP quanto estamos com o PP. Que eu saiba nenhum deles é inimigo da democracia. Ambos jogam até muito bem o jogo da democracia (é pena é que alguns sobreiros apanhem por tabela...)

11:41 da tarde  
Blogger Mário Almeida said...

Actualmente, o perigo comunista é tão grande como o perigo fascista. Porque, meu caro David, acreditas que alguma organização fascista em Portugal conseguisse triunfar ?

A manifestação do outro dia só foi notícia porque em Portugal o critério jornalístico é o que sabemos.
O facto de não haver o perigo nem de um lado nem do outro não importa para a discussão de saber se devem ou não ser permitidos.

E meter o PCP no mesmo saco com o CDS/PP (não te esqueças do CDS) é um bocadinho forçado.

12:48 da manhã  
Blogger David Afonso said...

Ora essa! E então porquê? Não são ambos partidos que exploram as margens do eleitorado? Ou foi na patranha de que o PP é um partido do poder?

1:23 da manhã  
Blogger Mário Almeida said...

Claro que o CDS/PP (lá estás tu a esquecer-te do CDS) não é um partido de poder, no sentido de que sozinho nunca lá chegará. Mas repara que em 2002 quando chegou ao poder ninguém deixou de "dormir descansado".

Por outro lado, o PS sempre se recusou a aliar-se ao PCP. A começar no Mário Soares. Porque terá sido ?
E ainda por outro lado, o facto do seu líder histórico ser actualmente Ministro de Estado no governo socialista não pode deixar de ser considerado em conta.

No entanto, na minha opinião o CDS/PP só está na margem do actual panorama político porque não há um partido de extrema direita assumido e representado no parlamento, ao contrário da extrema esquerda.

Se amanhã aparecesse um Le Pen que conseguisse atrair o número suficiente de votos para eleger um deputado, o CDS/PP como que levava um banho de "moderado".

2:26 da manhã  
Blogger David Afonso said...

Isso de me esquecer do CDS a culpa não é minha, mas de um tipo chamado Paulo Portas que me vendeu a coisa tão bem, que ainda hoje ninguém me convence do contrário. Olhe, para não ir muito mais longe recordo que o PP no Porto não teve qualquer problema em se coligar com o PCP durante quatro anos e consta que até nem se deram nada mal! Para além disso, o PCP já demonstrou ser uma força imprescindivel no panorama político nacional e já demonstrou que é capaz de gerir com a serenidade possível várias autarquias por esse país fora (hmmm... acho que vou a Peniche comer uma caldeirada e volto já!)...

2:50 da manhã  
Blogger Américo de Sousa said...

Caldeirada? quem falou aqui em caldeirada? E logo em Peniche? Pode ser no restaurante Beira-Mar? Não conheço melhor caldeirada no país. Peixe fresquíssimo e raia abundante. Têmpero soberbo. E uma simpatia no acolhimento que convida a lá voltar. Sempre. Afinal não é à mesa que se travam, por vezes, as mais vibrantes discussões? Saia essa caldeirada, por favor (não confundir com peixeirada).

12:32 da manhã  
Blogger David Afonso said...

Ó Américo!Encontrei aqui um camarada de caldeirada? Ora aqui está uma hipótese a considerar para o grandioso jantar de encerramento do bloge!

3:03 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Isso, isso, David. Mas já agora corrijo o nome do restaurante que é MIRA-MAR (o do Sr. Nuno)e não Beira-mar. Bom, o nome ainda pode enganar. Mas o paladar não...

12:07 da manhã  

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