O Eleito

quinta-feira, novembro 03, 2005

Os Portugueses II

O Estado português não funciona bem porque não é avaliado (nem auto, nem hetero, nem pela tutela, nem pelas inspecções, nem pelo público). Porque se a avaliação funcionasse, se houvesse maior transparência, perder-se-ia a flexibilidade do desenrasca, não seriam mais precisas a cunha nem a troca de favores, seriam precisas regras claras e que elas fossem cumpridas, o que têm vindo a interessar a pouca gente. Nem em cima, nem os de baixo, que – sabemos agora – têm vindo a beneficiar não de contrapartidas pelo seu trabalho mas de privilégios, exactamente como nos tempo do antigo regime, em que a troca se fazia em géneros.
Neste ambiente temos 20% de chefias, 15% de licenciados, 20% dos quais fora do país a trabalhar, milhares de licenciados desempregados e muita gente preocupada pelo facto de termos doutores a mais, em primeiro lugar a ordem dos médicos. Nitidamente, como mostram os estudos sobre literacia, os portugueses dão-se particularmente mal com pensamentos disciplinados e claros, tanto na escola – onde o insucesso e o abandono persistem em fazer a nossa vergonha universal – como no trabalho desqualificante (que por si só produz iliteracia acrescida, por ser valorizada precisamente a ignorância subserviente). Há um Portugal moderno a querer sair do velho Portugal aristocrático e hipócrita. Na educação e na justiça, só é explicável o insucesso de 30 anos de democracia pela opressão política dos respectivos sectores, em contraste com outros sectores libertados da vida nacional.
Tal como com a falta de participação cívica, não é porque não existam tendências fortes a favor da democracia: simplesmente isso – o que seja a democracia – ainda se discute menos do que outros assuntos. Em particular nas escolas e na justiça. O horror dos portugueses à política, que entendem como um palco de vigaristas, de onde não são capazes de distinguir honestos e bandidos, muito menos acreditam na ciência dos magistrados, é proverbial e deve ser explicado não apenas por via ancestral, de atraso histórico que jamais foi o nosso problema, mas pelo carácter amistoso e submisso do povo. Afinal há muito mundo por onde fazer vingar a vida, como todos na diáspora e nas antigas colónias bem sabem, para o bem e para o mal.
A história da revolução de Abril talvez nos dê uma sugestão da razão política de ser desta mentalidade aquietada. Tudo acabou quando se revelou a possibilidade de haver uma guerra civil, entre o norte e o sul. A enorme diversidade dos povos portugueses e o seu nacionalismo quase milenar foram caldeados numa tolerância que nos caracteriza, de afeições contrariadas – como no fado – de saudades do que não pudemos ser, para continuarmos juntos. A mobilidade dos votos entre partidos e entre autárquicas, presidenciais e legislativas também mostra como o povo português gosta de ser caudilhista e mesmo vernáculo nos concelhos (ou à porta dos tribunais) de quem não espera outra coisa que não sejam favores, e gosta de ser sensato e conciliador a nível nacional. Quem estiver em condições de pedir maioria absoluta obtém-na.
Os portugueses jogam na política como quem joga na lotaria. E os políticos portugueses aprenderam a fazer cálculos de probabilidades para dividirem entre si os negócios do Estado. Será que isto um dia vai terminar? É nessa perpectiva que se podem observar as próximas eleições presidenciais: estão todos em jogo. Os partidos, a alma de esquerda e sofredora (ou mentirosa?) do PS, mais uma vez despeitada – curiosamente sempre por Mário Soares – e até algumas boas vontades avulsas que procurarão mobilizar os eleitores. Mas também está em jogo a disposição que os Portugueses vão escolher adoptar para si próprios em função das campanhas e dos resultados eleitorais.
O povo prepara-se para exercer os seus raros poderes de soberania. Será que vai decidir acolher o D.Sebastião que voltou do nevoeiro, ou vai preferir um Rei já testado? Se aceitar jogar no ilusionismo, mais uma vez, a classe dominante ficará em casa, tranquila. Mas pode ser que invente uma saída crítica para o regime, ainda que não faltem ilusionistas a cobrir tal saída.
António Pedro Dores (BSP)

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